E no dia dos namorados brasileiros, uma invenção da família Dória para shoppings venderem mais, o presente fala mais alto. O presente é o mundo caindo, chegando no fundo do poço para conseguir impulso. Você abre o celular e lá está, um vídeo novo do Dave Chappelle. Como assim??? No meio da pandemia. Shopings abrindo no Brasil, bem na semana do dias dos namorados, né? Mesmo chegando no auge da pandemia. Entendi, enquanto isso um show de stand up novo aparece, do cara! Dave Chappelle inegavelmente é O CARA.
Uma região de campo nos EUA, carros chegam no fim do dia, todos de máscaras pretas com o reconhecido C de Chappelle em frente da boca. Alguém mede a temperatura de cada um que chega. As pessoas sentam em cadeiras distanciadas na grama. Parece uma noite agradável. Uma casa de campo serve como palco iluminado, o público está no jardim. Chappelle começa o show “8:46”. 8:46 é o tempo que levou para matarem George Floyd, 8 minutos e 46 segundos com o joelho de um policial assassino em seu pescoço enquanto ele implora por sua vida. Chappelle está todo de preto, com seu cigarro e uma corrente com pingente em C. Abatido, melancólico. Faz uma piada com sua família que faz barulho no fundo e revela que não sabe se o show vai funcionar, mas a única forma era fazer pra ver no que dá. Querendo ou não show vai ficar pra história, por ser o primeiro a voltar naquela região com público presente. Ele dá parabéns para os jovens que estão tomando as ruas do país porque não aguentam mais tanta injustiça com o povo preto. “Estou muito orgulhoso de vocês. Vocês são ótimos motoristas, eu estou confortável no banco de trás do carro”. Manipula seu caderno preto como se buscasse suas piadas. Elas não vem. Existe algo mais forte tomando o momento. “É difícil achar o que dizer sobre George Floyd… Então não vou dizer ainda…” E Chappelle ri. Só ele ri. Porque na verdade ele sabe muito bem o que dizer, ele está ali pra isso, não tem outra motivação, “E… Eu… Eu vou dizer alguma coisa”. O vídeo postado nas redes tem 27 minutos e 20 segundos. Estamos em 2 minutos e 20 e ele começa. Não fala outra coisa, ah não ser sobre o que está havendo em seu país e sobre a sua opção de apoiar silenciosamente os protestos porque agora não era a hora das celebridades, agora era o povo nas ruas dando seu recado. Fica puto com cobranças sobre seu posicionamento “Vocês não acompanham meu trabalho???”, “Não pense que meu silêncio é complacente. Toda essas merdas que os neguinhos estão falando, colocando todo mundo pra cantar essas porra dessas músicas. Eu sei toooodas essas músicas! Eu fui criado nessas músicas! Porque alguém iria se importar com o que seu comediante favorito pensa, depois de ver um policial ajoelhar no pescoço de um homem por 8 minutos e 46 segundos”. E aqui eu sinto que ele está trazendo a revolta por cima da sua dor, da sua lamentação, ele está puto. “…8 minutos e 46 segundos. Eu não consigo tirar esse número da minha cabeça. Porque é o horário do meu nascimento na minha certidão. Eu nasci as 8 e 46 da manhã. E eles mataram esse neguinho em 8 minutos e 46 segundos”. E se não fosse pela piada tosca com vagina que ele faz em seguida, com seu caderno preto na mão, Chappelle passaria tranquilamente por um pastor. Quase meia hora de vídeo e não tem nem 3 piadas em tudo, porque não é sobre isso. Agora não é sobre ser engraçado, é sobre ser ouvido, é sobre o final de Nanette. É sobre abandonar a comédia por um momento para reconhecer que não é hora de fazer piadas, é hora de tomar as ruas, é hora de mudar a porra toda, é hora de ficar puto e mostrar para o agressor a revolta do oprimido. Dave passa o restante do show lembrando de casos e mais casos de pessoas pretas assassinadas por policiais. Chega a comentar que foi parado por um policial, e no dia seguinte esse mesmo policial estava matando um jovem negro que nem teve tempo de entender o que estava acontecendo, não teve chance de questionar ou de se inocentar. O corpo preto é julgado como criminoso e isso precisa acabar. Ele se lembra dos Panteras Negras e de como eles conquistaram respeito. Ele se lembra de Kobe Bryant, no mesmo dia da sua morte, Dave iria receber um prêmio, ele não foi, estava de luto. “…a escravidão é hoje!!!… Vocês estão loucos pra cacete se não conseguem ver isso!!! …Por que Dave Chappelle não diz nada? Porque Dave Chappelle entende a porra que ele está vendo!!! E essas ruas vão falar por si eu estando vivo ou morto. Eu confio em vocês!”.