Piadas são ferramentas de comediantes e assim como um martelo é a ferramenta de um marceneiro, ele pode pregar um prego, e também pode esmagar um crânio. Enquanto comediante e professor, me interesso por olhar para quem nós estamos mirando as piadas, e se o alvo poderia rir da bala que voa em direção a própria cabeça. E se rir, seria um riso desesperado?

Mais um caso polêmico envolvendo a comédia Stand-Up e os limites do humor. Dessa vez com o Dihh Lopes. Uma figura que está em constante crescimento na cena nacional e internacional, produz muitas piadas e faz parte do maior grupo de comédia Stand-Up da história do Brasil, o 4 Amigos. Dihh tem inúmeras piadas e como todo comediante não agrada a todos e volta e meia testa os limites do humor. Não conheço todo material do Dihh mas já vi coisas muito interessantes em seus vídeos.

Faço comédia stand-up a 16 anos e me interesso por refletir sobre nossa profissão e isso tem se intensificado ainda mais quando comecei a dar oficinas de humor, improviso e Stand-Up em 2013 e isso gerou o Espaço da Comédia, minha escola de artes em São Paulo.

Os alunos me mostraram um trecho do show do senhor Lopes e fiquei refletindo sobre vários aspectos desse acontecimento.  Esse texto tem a pretensão de dissecar as piadas de forma técnica e provocar uma reflexão sobre as relações sociais do riso e relação do profissional do humor.

Vídeo do show

https://youtu.be/ONqReO2XL00

Dihh Lopes 2019 Instagram “que bom que ainda tem gente que prefere o riso acima de tudo… A comédia sempre vence”, “Esse vídeo não é recomendado pra você que é chato e confunde opinião com piada” .

O vídeo se trata de um show de comédia Stand-Up com o tema de humor obscuro onde a plateia estava sob aviso do teor do show. Uma parte das piadas eram sobre o atentado em uma escola na cidade de Suzano, onde 11 ficaram feridos, 8 pessoas morreram e os assassinos de acordo com a polícia suicidaram  ao final. Esse trecho que vou analisar.

Claramente essas piadas em outros contextos não iriam ser bem recebidas. Mesmo em outros shows de humor. Nesse  show específico existe uma plateia interessada em humor macabro e que conhece o artista que se apresenta sendo assim já está ciente do estilo de temas e provocações que interessam a esse artista, e ainda assim ela se choca e alguns momentos.

Piada 1.  “triste o atentado da escola de Suzano, quando eu vi a notícia a primeira coisa que eu pensei foi, caralho! Tem escola em Suzano?”  

Boas risadas com aplauso, tensão criada com o tema e alívio cômico com a resolução do raciocínio. O alvo da piada é o sistema de ensino brasileiro que em muitos lugares é precário, a plateia aplaude por concordar com essa ideia.

Piada 2, “Isso aí aconteceu também por culpa das crianças que não ouve a mãe né? Isso nunca ia acontecer comigo, eu sempre ouvi o conselho da minha mãe de não aceitar bala de estranho”.

Risadas médias  e comentários, clima  um pouco constrangedor. Alvo da piada são as crianças sendo colocadas como culpadas, em uma piada que retrata um tiroteio em uma escola,  onde o set up tem a frase “culpa é das crianças”  é muito difícil trazer o alívio cômico, e de fato o alívio não vem tanto através da estrutura da piada, vem mais através do constrangimento com o que está sendo dito, não existem risadas fortes e aplausos em comparação a piada anterior, que em geral significam aprovação e concordância com o argumento do humorista.

Piada 3,  “na escola de Suzano eles levam a sério né? O vivo ou morto, a brincadeira”. 

Risadas fracas e o comediante ficou meio sem graça, percebe que está em terreno perigoso. Risadas foram ainda menores, o alvo da piada são crianças que morrem. Mais uma vez constrangimento da plateia e risos nervosos. 

Piada 4, “a culpa não é minha, só to fazendo piada, a culpa é de Suzano, lugar perigoso pra caralho. É tão perigoso que deveria chamar, Suzano Von  Richthofen”. Risadas fortes e aplauso. O alvo da piada é a segurança pública precária, plateia concorda e aplaude. O trocadilho com a Suzane, uma criminosa conhecida, encaixa muito bem e a própria tragédia causada pela Suzane está no passado e já se deu tempo para cicatrizar a feriada, em muitos casos  comédia é tragédia mais tempo. A ideia da piada é associar a criminosa perigosa a uma cidade perigosa onde crimes são constantes, a piada funciona. 

A escolha da ordem das piadas foi bem feita para o ponto de vista de um comediante dando estrutura a um set cômico, piadas boas pra abrir e fechar o tema “Suzano” e piadas arriscadas no meio.

Intenção e contexto são bons itens para se observar nesses casos polêmicos do humor. Uma vez que esse vídeo vai para internet, a terra de ninguém, ele pode e vai ser manipulado editado e tirado do contexto,  o próprio comediante fala disso durante o show durante uma outra piada. Tirar coisas do contexto é algo que os próprios comediantes fazem com os diversos temas que manipulam para interesse de conseguir risadas. 

A intenção de acordo com o comediante é apenas fazer causar risos. Ele mesmo durante o show em uma piada diz que “a culpa não é minha, só estou fazendo piada, a culpa é de Suzano…”  E na abertura do vídeo colocou um texto dizendo “esse vídeo não é recomendado pra você que é chato e confunde opinião com piada”. Classificando que o único problema é confundir opinião e piada e quem não entende isso é chato. Acho que a questão é mais complexa.

Quando ele diz que a culpa das crianças terem morrido é delas mesmo por aceitar bala de estranhos e que nessa escola elas levam a sério a brincadeira “vivo ou morto”, para mim enquanto comediante a apreciador de comédia está claro que ele não concorda com essa ideia, é uma tentativa de distorção cômica através de uma associação com uma brincadeira de infância comum e uma frase popular. Porém para muitos na internet e pela própria reação da plateia, a piada não foi precisa no objetivo de alívio cômico, me parece que gerou também constrangimento. 

Quando o comediante se refere a Suzano, e diz que a culpa é de Suzano, por Suzano ser violenta não há precisão em definir o que é Suzano nesse contexto, me parece que a intenção se referia a segurança pública de Suzano. Falar o nome da cidade apenas abre margem para interpretação do que se define por Suzano. Parece que o atentado é culpa de todos os cidadãos e de um cidade e isso fere o orgulho da cidade e seus habitantes. Seria diferente se o alvo da piada fosse a segurança pública.

Imagino os atingidos pela tragédia assistindo esse show. E gostaria muito de saber se eles iriam dar risada. Se sim, a catarse estaria feita, se não,  apenas mais dor em uma ferida aberta. 

Essa piada tem um alvo, em parte dela o alvo é o sistema educacional e uma tentativa de tornar o alvo o sistema de segurança. Em outra parte o alvo são crianças mortas, vítimas de um atentado. O alvo não está nos terroristas, nem nos incentivadores do massacre que estavam na deep web ou mesmo na influência da cultura estadunidense armamentista que tem esse tipo de atentado com uma frequência assustadora em seu país.

O comediante Dihh Lopes defende que não se trata da sua opinião os comentários macabros que faz. E acredito mesmo não ser sua opinião enquanto cidadão. E isso não torna o comentário menos cruel.

A comédia Stand-Up anda nessa área cinzenta onde o cpf se mistura com drt, e nem existe drt de comediante, não é uma profissão oficinal, existem atores e palhaços regulamentados, mas por enquanto não existem comediantes de stand-up. Esse contexto faz com que muitas vezes a opinião e a piada se confundam para o público, até porque os comediantes não interpretam personagens e usam suas próprias roupas e seus próprios nomes. 

Então ele diz que não concorda com a ideia, mas entende que ela serve para chocar o público e a utiliza. Acredito que para maioria das pessoas incomodadas a questão não é sobre ser ou não ser sua opinião. Não é sobre a pessoa que diz acreditar naquilo. Se trata da crueldade de dizê-lo. 

Essa postura invoca um humor provocador e imaturo testando os limites sociais e liga um foda-se para o bom senso. Ela quer fazer barulho, e mostra uma frieza emocional. Não se trata de contestar o sistema ou mesmo rir da cara de terroristas. Na parte mais frágil da piada o comediante escolhe rir da vítima e não do criminoso. E isso que boa parte da sociedade refuta. 

 Se pensarmos no racismo que ainda hoje se usa como elemento recreativo podemos fazer um paralelo com essa piada do Dih. Uma vez que piadas racistas em geral se apoiam também na crueldade para obter o riso.

Uma piadas racistas em 1700 era vista com normalidade por aquela sociedade. Piadas racistas eram produzidas, propagadas e alimentadas por pessoas brancas que estavam no poder. Os filhos dos filhos dos filhos dessas pessoas em sua maioria ainda hoje são brancas e ainda estão no poder. O último país a abolir a escravidão de africanos negros ainda está despertando  para o fato de que não se deve diminuir ou ridicularizar alguém por sua cor. É uma luta constante e que mostra possibilidade de alternância ou equilíbrio de poder social uma vez que as comunidades negras ganharam mais dignidade e possibilidade de protesto através das redes sociais e de leis que tentam reparar erros históricos.

Creio que não se ri de alguém por aquilo que  é. Se ri de alguém por aquilo que faz. Rir de um negro por ele ser negro é crime. Rir de um homossexual por ser homossexual logo logo será oficializado como crime. E ainda assim existem piadas que se baseiam na crueldade de diminuir minorias. Em geral quem faz e propaga a piada? Os filhos dos filhos dos filhos dos filhos dos donos de escravos.  

A cada dia mais entendemos que não é certo fazer piada racista, pois engloba uma atitude criminosa de atraso civilizatório. São crueldades jogadas no ar que enfraquecem a consciência social e o espírito de suas vítimas.  

Definir humor macabro ou cruel como “humor negro” me parece reforçar uma ideia racista, onde o que é dado como negro é pior, pesado, cruel. E isso gera um outro grande debate. E sim, existem públicos para tudo quanto é tipo de humor, assim como existem pessoas com diferentes sensos de civilização e com diferentes entendimentos de mundo e de crueldade. Ainda hoje existem movimentos nazistas e ainda bem que também existem movimentos de consciência negra, lgbt, indígena etc. Então é fácil entender que sim, existem públicos para todos os tipos de piadas.

Agora é interessante também perceber que existem inúmeros tipos de risadas. O riso além de alívio é comunicação. Rimos mais em grupo do que sozinhos, através desse estranho som espontâneo dizemos algo.   

Damos risadas por diferentes motivos; para concordar com algo. E quando a plateia concorda muito em geral aplaude a ideia que a piada revelou, ela estava diante de seus olhos  o tempo todo mas até então não percebiam. 

Podemos rir  para discordar de algo, como quando achamos algo tão absurdo e fora de contexto que o riso vem como um alerta do cérebro dizendo “isso só pode ser mentira, não é possível”. Como quando eu ri horrores no 7×1 do Brasil e Alemanha, minha mãe ao meu lado bufava de raiva e gritava de desespero sem entender,  e eu ria pela mesma falta de compreensão. 

Podemos rir de felicidade, imagina que isso era o que os alemães estavam fazendo na Alemanha ao lembrar que perderam uma final pro Brasil anos atrás e agora estavam dando o troco na nossa própria casa.

Podemos rir para expressar constrangimento, o famoso riso nervoso. Um riso que é uma mini máscara social tentando amenizar uma situação desconfortável, um último apelo de simpatia que o organismo tenta criar através do riso. Esse mesmo riso em sua versão mais tranquila serve para expressar timidez. 

E podemos mesmo rir para expressar crueldade. Ao sair por cima em uma situação de vingança ou mesmo por falta de empatia, característica presente em psicopatas, que perdem ou nascem sem a habilidade de compaixão. É a risada cruel do trunfo do vilão.

E podemos até rir para revelar a dor. Eu mesmo quando faço tatuagem, no ápice da dor começo a rir de desespero ou começo a cantar. Me toquei disso na minha quarta tatuagem.

 Existem situações ainda mais graves que representam esse riso de dor. Há casos raraos de vilarejos em extrema miséria onde os habitantes sofreram de histeria coletiva e toda a vila não conseguia parar de rir, desmascarando a tragédia social daquela região, o verdadeiro riso de desespero. Me familiarizei mais com esses casos ao ler o livro THE HUMOR CODE do Peter Mcgraw e Joel Warner, fica a dica. 

Com tantas opções de risadas diferentes e se entendendo que existem sim plateias cruéis assim como comediantes cruéis, fica a provocação para meus colegas de profissão.

É possível servir muitos tipos de risadas, há um menu interessante de opções a disposição do cozinheiro. Enquanto profissional da comédia, qual prato você escolhe servir? 

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9 Comments

  1. Vamos falar de como o mundo deveria ser, ou vamos falar de como o mundo de fato é?
    Esse terreno de humor negro é extramente delicado, eu sonho com uma sociedade onde cada um fale o que pensa, para isso, seria preciso um estágio de evolução em que palavras ditas não tenham o poder de ofender ninguém, quando a gente ver algo que não nos agrade, simplesmente usarmos o controle remoto, principalmente o mental, e tirar aquilo da nossa frente
    Mas reconheço que estamos longe dessa calma toda, por isso, evito fazer piadas sobres outros, concentro o máximo em falar mal de mim mesmo, ando fugindo de polêmicas

  2. SENSACIONAL! Meus parabéns ao Fabio! Até compartilhei das minhas redes sociais. Mais pessoas precisam ler e começar a refletir o que é humor e o que é desespero. Algum comediante que faz esse tipo de piada já perguntou o que faria se estivesse na pele de quem sofreu? Algum deles já se comparou a um psicopata? Não né (calma, não estou falando que são). Mas psicopatas não possuem empatia nem capacidade de ter sentimentos e por isso se divertem com o sofrimento alheio. Quando vc consegue ter atos semelhantes a um psicopata, acho que devia repensar.
    Td que falamos, deve ser pensado. O humor é sério, ajuda mta gente (inclusive eu), mas quando vira desespero e sem consciência, perde a essência.

  3. confesso que meu “celebro” deu uma bugada , algumas coisas concordo outras não , recomendo a serie Larry Charles’ Dangerous World of Comedy, abraços !

  4. Parabéns Fábio! Realmente uma análise técnica, conceitual e mesmo sociológica do texto como um todo. Como comediante iniciante de stand up acredito que o humor deve ter uma função de critica social. – sua análise deixa isso bem claro – Fazer piadas de tragédias sociais creio também faz parte da essência do humor, não a toa o Ceará com um povo tão sofrido e castigado por mazelas sociais e climáticas (seca) é berço de grandes comediantes. Porém como você bem frisou, comédia é tragédia mais tempo, e no caso de Susano, muito cedo. Com relação a sua pergunta final. ” Enquanto profissional da comédia, qual prato você escolhe servir? ” Penso e posso estar bem equivocado, que comédia stand up é de fato se levantar, se posicionar sendo assim vejo como bem difícil não associar minha opinião das piadas que crio. Para o publico acho impossível mesmo. Ou seja meu humor vai sempre caminhar com minha ética pessoal. Abraço

  5. Excelente colocação! Afinal essa linha tênue entre o aceitável (cômico, neste caso) e o cruel está presente na comunicação!
    Adorei o posicionamento e conscientização! ??
    Sensacional.

  6. Olá, Fabio!

    Primeiro, parabéns pelo texto e análise. Por favor, ajuste o início, onde há um erro na grafia do verbo haver :”Faço comédia stand-up HÁ 16 anos e…”
    Sua análise, na minha opinião, é um pouco “vigilante silencioso” demais. O conteúdo do comediante Lopes é direcionado ao humor (pesado), onde é difícil estabelecer limite. Aliás, a questão do limite sempre foi complicada, pois alguns defendem o uso do “bom senso” e outros defendem a postura da “não ofensa”. O problema é que isto é subjetivo, e a ofensa é relativa ao alvo, geralmente associado a um problema que seja reflexo da sociedade.
    Por exemplo, eu estive no seu show em Curitiba e lembro que você fez algumas piadas machistas, o que é mais ofensivo hoje, anos depois deste show. Acho você um bom comediante, assim como o próprio Diih Lopes, por um simples motivo: Vocês são capazes de fazer pessoas rirem. Este é o único trabalho do comediante. Existe todo direito de se ofender com piadas e não consumir o conteúdo. A crítica também deve exisitir. Mas vamos medir. Não apoiar uma censura ou criticar o humorista como um destilador ódio ou o criminoso que cometeu o ato. E o mais importante, o próprio humorista informou que existe um público alvo específico, deixando claro a intenção de não atingir com ofensas.

    Continue com seu bom trabalho!

  7. Genial, velho! o/

  8. Olá, meu nobre. Como fã seu, me permito discordar de uma pequena coisa: seu entendimento sobre “humor negro”. Ocorre que há nos tempos modernos uma repulsa nem sempre ponderada a tudo que coloca a palavra “negro” em um contexto qualquer que não seja de exaltação. Sob meu humilde ponto de vista – o de quem se arvora em escrever uns textículos (eu disse teXtículos) de comédia stand up – o chamado humor negro não está na zona fácil de colocar o afrodescendente como sinônimo de algo ruim, está mais para o submundo, o ambiente escuro, sombrio, onde a luz não chega.

    Um quebra-costelas, direto de Aracaju!

    • Entendo seu ponto de vista, porém o assunto é mais complexo e a origem da expressão é de um contexto completamente diferente do Brasil de 2020. Recomendo que veja minha última live: https://youtu.be/uKpY8VIH6M8

      Esse assunto precisa de tempo para ser entendido e gerar reflexão. Não tem solução simples. E hoje continuar falando ou não “humor negro” pode ser uma decisão social.


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